quarta-feira, 18 de maio de 2016

Bibliotecas e colecções - no Dia dos Museus

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Do texto de Walter Benjamin, «Unpacking My Library. A Talk about Book Collecting», de 1931, cuja leitura me foi recomendada, retirei alguns pontos que achei mais interessantes. 
O texto pode aplicar-se não só às colecções de livros, mas às colecções em geral. E achei curioso o facto de muito do que foi dito por Benjamin se aplicar a algumas pessoas que conheço que fazem colecções (nomeadamente de livros).
Benjamin refere o valor afectivo da colecção, nomeadamente pelo facto de se relacionar com a memória e história ligada a cada objecto:
«(...) tide of memories which surges toward any collector as he contemplates his possessions. Every passion borders on the chaotic, but the collector's passion borders on the chaos of memories. (...) For what else is this collection but a disorder to which habit has accommodated itself to such an extent that it can appear as order? (...) And indeed, if there is a counterpart to the confusion of a library, it is the order of its catalogue.»
Se neste trecho ainda se coloca a dualidade ordem (catálogo, inventário, ...) / desordem, noutras passagens é a carga emotiva que vem ao de cima:
«(...) for a true collector the whole background of an item adds up to a magic encyclopedia whose quintessence is the fate of his objects. (...) One has only to watch a collector handle the objects in his glass case. As he holds them in his hands, he seems to be seeing through them into their distant past as though inspired. (...)»
Jan Steen, Little Collector (1663-1665)

Há há algo de mágico numa colecção, um renascer: «(...) to a true collector the acquisition of an old book is its rebirth. (...)». Ou uma libertação:
«On the other hand, one of the finest memories of a collector is the moment when he rescued a book to which he might never have given a thought, much less a wishful look, because he found it lonely and abandoned on the market place and bought it to give it its freedom - the way the prince bought a slave girl in The Arabian Nights. To a book collector, you see, the true freedom of all books is sometwhere on his shelves.»
Carl Spitzweg, The Book Worm
No que respeita mais aos livros, Benjamin faz duas afirmações que achei curiosas, mas fazem todo o sentido. A primeira é que escrever é um acto ligado à necessidade de criar algo que não existe e que se necessita: «(...) Writers are really people who write books not because they are poor, but because they are dissatisfied with the books which they could buy but do not like.(...)» A outra é que coleccionar livros não é sinónimo de lê:los:
«(...) the non-reading of books, you will object, should be characteristic of collectors? (...) Suffice it to quote the answer which Anatole France gave to a philistine who admired his library and then finished with the standard question, "And you have read all these books, Monsieur France?" "Not one-tenth. I don't suppose you use your Sèvres china evey day?"»
David Teniers the Younger, The Picture Gallery Of Archduke Leopold Wilhelm (1640, Altes Schloss Schleissheim, Oberschleissheim)

Mas não se poderá dizer o mesmo de outros campos criativos e de colecção? Tudo o que se cria é, em princípio, criado pelo facto de acharmos necessário e de não encontrarmos à venda.
Por outro lado, há muitos coleccionadores, mesmo de outro tipo de objectos (pinturas, porcelana, ...) que têm os seus objectos guardados e por vezes nem os vêem quotidianamente.

Rudolf von Alt, The Library In The Palais Dumba (1877)

Daqui vamos para a questão seguinte, a magia da posse. Benjamin aborda a questão do prazer de não devolver um livro ao seu dono, mas interessou-me mais esta conclusão: «(...) ownership is the most intimate relationship that one can have to objects. Not that they come alive in him, it is he who lives in them. (...)»
Essa qualidade emotiva da colecção privada desaparece com a colecção pública, mais arrumada, mais impessoal, mais utilitária, sem posse definida:
«(...) the phenomenon of collecting loses its meaning as it loses its personal owner. Even though public collections may be less objectionable socially and more useful academically than private collections, this objects get their due only in the latter.»
Numa sociedade democrática, a tendência é para o público em detrimento do privado. No processo, há necessariamente muito que se ganha, mas também algo que se perde. Mas ainda há muitas colecções particulares, não só de livros, e julgo que sempre existirão.
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Walter Benjamin, «Unpacking My Library. A Talk about Book Collecting» (1931), in Illuminations, New York, Schoken Books, pp. 59-67 (online). Os sublinhados são meus.

8 comentários:

APS disse...

Gostei imenso do seu texto, Margarida. Ambicioso e rico como poucos, que aparecem pela net, que não é propriamente um lugar para pensar..:-)
Imagino que a obra de W. Benjamin deve ser um livro cheio de interesse e muito estimulante. Vou tomar nota dele.
Duas pequenas observações - aditamentos pessoais, melhor dizendo - sobre o seu poste:
- as colecções pessoais são sempre um "bordão" excelente para a nossa memória. Bordão para um tempo, mas também uma recordação de emoções ou impressões da nossa sensibilidade, às vezes, muito recuadas e íntimas.
- o "para criar algo que não existe", de Benjamin, não colhe inteiramente o meu acordo. Às vezes, é só criá-lo ou dizê-lo de maneira diferente. Num registo de outro tipo de sensibilidade humana.

Finalmente, quero referir um sítio (hoje, dia de Museus) onde Arte e Biblioteca se reúnem, numa riqueza e harmonia pouco comuns: o Palácio da Ajuda. Onde pouca gente, infelizmente, vai.
Fica muito por dizer dos estímulos que o seu poste me provocou, mas por agora já basta...
Um bom dia!

Margarida Elias disse...

Muito obrigada, APS! Concordo consigo que muitas vezes criamos por prazer e não necessariamente por necessidade - outras vezes, como diz, é apenas a necessidade de dizer algo de maneira diferente. Nunca visitei convenientemente o Palácio da Ajuda e tenho de o fazer. Boa tarde!

Presépio no Canal disse...

Gosto muito do Palácio da Ajuda. Vi-o duas vezes, mas já não vou lá há 9 anos. Gostava de lá voltar.
Beijinhos!!

Presépio no Canal disse...

E agora que já li o texto, já posso comentar.

Sim, sente-se essa magia quando se entra em território de um coleccionador. Diria mesmo que se trata de um espaço sagrado, um templo pessoal, mas um templo. Sabe-se que não se está num espaço qualquer. Há um respeito, uma deferência associados.

Estima e apego emocional são palavras que me surgem de imediato. E fico a imaginar a história por trás de cada um daqueles objectos. Como foram parar às mãos daquela pessoa (esse encontro libertador...), proveniência, a viagem do próprio objecto. Escutar um coleccionador é das viagens mais ricas que se pode fazer; pelo menos, sinto assim.

Gosto muito de casas com memória, com história, vestidas com apontamentos do percurso de quem lá vive. Mesmo que as colecções sejam pequenas (livros, marcadores, leques, desenhos, postais, etc), diz-nos muito sobre o espírito/a alma de quem lá habita. Gosto muito destas marcas distintivas, numa época, em que as casas me parecem tão iguais, com mobílias oriundas do mesmo lugar...

Beijinhos!

Margarida Elias disse...

Sandra - Quando vieres a Lisboa, a ver se combinamos ir as duas à Ajuda. Quanto ao teu comentário, agradeço muito, porque me ajudou a fazer outras leituras do tema do coleccionismo. Beijinhos!

Presépio no Canal disse...

Margarida,

Excelente ideia!! Vou gostar muito de ir contigo. :-)
Beijinhos!

ana disse...

Gostei das suas escolhas.
Coleccionar é impulsivo e é amar de certa forma um objecto, ou um livro, ...
Realmente guardar o que se colecciona e não se ver é um pouco absurdo, mas julgo que esses coleccionadores acabam sempre por revisitar a sua colecção.
A posse, é uma das vertentes, talvez a menos bonita mas faz parte.
Tive várias colecções, agora estou mais selectiva.
Não conheço este livro que menciona mas perece-me que deve ser interessante.
Beijinho. :))

Margarida Elias disse...

Ana - Também já tive muitas colecções, mas desisti por falta de espaço e de $. Restam os restos das colecções. Mas fascina-me ver as colecções das outras pessoas e há algumas extraordinárias. Bom domingo!