domingo, 20 de outubro de 2013

Ainda sobre as Naturezas Mortas

Hubert van Ravesteyn, Still Life with Nuts, Wine and Tobacco (1671 - Link)
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Por tradição, o formato da pintura de natureza morta é de dimensões relativamente reduzidas e a escala dos objectos tende a ser a mesma da realidade. Esta escala torna a pintura mais parecida com o espaço em que está inserida e a cena representada como que prolonga o espaço de produção ou recepção, contiguidade acentuada pela procura da ilusão de óprica. O fundo das naturezas mortas costuma ser sem horizonte definido, um fundo opaco composto por uma parede escura, o que é acentuado pela fraca iluminação, direccionada e em claro escuro, que contribui para eliminar a distância. Contudo, nem sempre se cumpria esta regra, surgindo naturezas mortas concebidas em lugares definidos e em tons claros, ou mesmo inseridas em paisagens. Por outro lado, desde o século XX, que a arte foi conquistando uma outra liberdade, que permite a criação de naturezas mortas em várias dimensões e com objectos figurados numa escala bastante superior à realidade, negando-se mesmo o colorido natural.

Willem Kalf, Still Life with Ewer and Basin, Fruit, Nautilus Cup (1660 - Link)

A ligação entre a natureza morta e o retrato tem longa tradição e já foi analisada por Oman Calabrese (Como se Lee una Obra de Arte, 1993). Já referimos que os retratos de família estão na origem das naturezas mortas de refeição, mas não devemos esquecer que as naturezas mortas surgiam noutro tipo de retratos, relacionando-se com a pessoa representada - por exemplo, livros junto de um escritor. Evidentemente, surgiam também naturezas mortas em quadros de género, históricos e religiosos, mas aí a relação é diferente, geralmente mais decorativa ou simbólica.

Portrait of a Patrician Family (1610 - Link)

A natureza morta pode substituir um retrato na ausência da pessoa física retratada e as primeiras naturezas mortas independentes, no período Moderno, apareceram na parte de trás dos retratos. O formato, escala e espaço do retrato tem paralelo com o das natutrezas mortas, pois o retrato também costuma assumir um tamanho próximo da realidade, figurando a pessoa num fundo abstracto e indefinido, procurando o efeito de trompe l'oeil. Em ambos os géneros se procura, geralmente, captar o instante duradouro, ficando os elementos em pose, dispostos em cena pelo artista. 

Henri Stresor, The Oyster Eater (Link)

É ainda de referir que, apesar das naturezas mortas corresponderem à representação de objectos e seres inanimados, é frequente a sua associação à pintura de género e à representação de pequenos animais. Alguns artistas fizerem numerosas pinturas de género em que a presença humana é secundarizada, ao ponto de se incluir essas obras em contextos temáticos de natureza morta. Aliás, a pintura de género, até pelo seu pequeno formato tradicional, tem proximidade, incluindo histórica, com a pintura de natureza morta - sendo de recordar as pinturas de "bodegones" ou os quadros de quotidiano holandeses, que influenciaram a pintura do século XIX, como no caso de Columbano ou Hammershøi. A questão da escala também contribui para a intromissão de géneros, com a figuração fortuita de pequenos animais vivos (insectos, roedores, ou até mesmo cães e gatos) em pinturas habitualmente consideradas de natureza morta (caso da Raia de Chardin). No entanto, não se consideram entre as naturezas mortas as figurações de animais de grande porte, que, em contrapartida, se assumem como presenças habituais em quadros de paisagem. Aqui há ainda outra questão que é o facto das naturezas mortas tenderem a surgir em espaços fechados e íntimos, o que normaliza a presença de animais que existem nos espaços domésticos, quer de forma permitida (caso dos gatos) quer de forma indesejada (caso dos insectos). Os animais, nestes casos, ajudam a construir a leitura simbólica das composições, o que se proporciona pelo significado  a eles associado.

Juan van der Hamen y Leon, Still Life with Sweets (1627 - Link)

As naturezas mortas correspondem a uma representação do mundo material, mas são simultaneamente um testemunho da vida interior do artista e incitam à meditação. Se possuem uma forte relação com o mundo sensível, também apelam ao intelecto, pois o artista, para as conceber, tem de realizar um esforço de concentração e de compreensão do mundo real, traduzido para o quadro através de uma composição artística.

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