sexta-feira, 16 de maio de 2008

Paul Klee e o Surrealismo


Paul Klee, Mural from the Temple of Longing (1922, MOMA, New York).
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Relacionar Paul Klee com o Surrealismo implica relacionar um artista com um percurso muito individualizado e que só é facilmente ligado aos grupos a que aderiu explicitamente. O grupo liderado por André Breton implicava, para além de uma nova postura na criação artística, a busca de um estado de espírito que deveria ter consequências na própria vida. Klee não demonstrou uma grande preocupação em se aproximar ou afastar do Surrealismo. Contudo, a sua obra gráfica pode ser vista como uma antecipação dos objectivos da estética surrealista, ou seja, de um automatismo psíquico que transpunha para um suporte a vida interior sem qualquer mediação convencional ou racional.
Foi através de Max Ernst que o grupo surrealista tomou contacto com a obra de Klee, no início dos anos 20. Aragon foi um dos primeiros a interessar-se pela sua obra e a mencionar o seu nome em Paris. Em Abril de 1925, em La Révolution Surréaliste, por iniciativa de Artaud, foram reproduzidos quatro trabalhos do artista. No ano de 1936, o pintor foi representado na exposição do Surrealismo em Londres, numa ocasião em que Breton pronunciou um discurso sobre os limites e fronteiras do Surrealismo. Em 1941, na «Génese et perspective artistique du Surréalisme» Breton voltou a mencionar Klee. A passagem em que o faz é muito breve, apenas referindo o que considerava ser um «automatismo (parcial)» como um contributo para o posterior desenvolvimento de uma pintura surrealista.
O número dos Cahiers d'Art respeitante a 1945-1946 fez uma uma homenagem a Klee, com textos e poemas de autores ligados ao Surrealismo. Crevel surgiu representado com um artigo de 1928, onde escreveu a famosa frase que diz que perante o trabalho de Klee «travei conhecimento com animais de alma, aves de inteligência, peixes de coração, plantas de sonho». Entre os dissidentes do Segundo Manifesto surgia Soupault, com um texto de 1929, onde afirmava que a pintura de Klee «Não é comparável ao sonho. Quero dizer com isso que não me evado noutro universo, mas que o visito, que o percorro com os olhos de todos os dias. (...) Nós somos, graças a ele, cegos que vêem. Klee é um libertador». Bataille dizia: «Senti-me sempre de acordo com um lado discreto, insistente, obcecado verdadeiramente silencioso de todas as suas composições». No ano de 1946, na revista Fontaine, Masson assinou um «Éloge à Paul Klee», onde comentava que o trabalho do pintor alemão «continua debaixo do selo do segredo. Assim fica no seu lugar próprio, na ordem cuidadosamente ocultada dos valores espirituais».
No nível plástico a obra de Klee tem semelhanças com a de Miró. Ambos se interessavam pela música, nomeadamente por Bach, e ambos praticaram uma «picto-poesia. Tanto um como o outro são frequentemente associados à pureza primitiva e das crianças. Os dois partilharam uma noção de sublime onde, por detrás de uma aparente ironia ou inocência, se esconde um lado mais sombrio. O tema do olhar do real é uma obsessão dos surrealistas, e tanto Miró como Max Ernst citavam frequentemente a frase de Klee: «E agora os objectos olham-me».
Era também comum à estética surrealista e à de Paul Klee a valorização dos sonhos e do inconsciente. Ele também procurava o maravilhoso próprio do imaginário, mas não recorria a processos de excitação alucinatória. Chegava às imagens do inconsciente por um processo consciente, já que para ele esses eram dois campos unidos da mente humana. Mas por certo que Klee teria concordado com a frase de Breton, ao afirmar que «o modelo será interior, ou não será».
Noëmi Blumenkranz, num artigo sobre Klee do Dictionnaire Géneral du Surréalisme et de ses environs, notou que o ponto supremo de Breton, no qual todas as antinomias deixam de ser compreendidas contraditoriamente, aparenta-se com o ponto cinzento de Paul Klee, que seria o primeiro ponto da criação. O ponto cinzento era o ponto fatídico entre o que vive e o que morre: «Estabelecer um ponto no caos é reconhecê-lo necessariamente cinzento devido à sua concentração principal e lhe conferir o carácter de um centro original onde a ordem do universo vai romper e irradiar em todas as dimensões. Afectar um ponto de uma virtude central, é originar a cosmogénese. A este acontecimento corresponde a ideia do todo. Começo (...) ou, melhor: o conceito de ovo».


O pintor apelava para uma espécie de limbo onde podia dizer que o seu «ardor é mais da ordem dos mortos e dos seres não nascidos. (...) Ocupo um ponto recuado, original da criação, a partir do qual pressuponho as formas próprias do homem, do animal, do vegetal, do mineral e dos elementos, no conjunto das forças cíclicas / (...) As possibilidades são infinitas e a fé nelas vive, em mim, criadora. / (...) A arte é um símbolo da Criação. Deus não se preocupará com os estados fortuitamente actuais». Esse local aparentava-se bastante com o estado de clarão que Breton pretendia alcançar através do acesso ao inconsciente. Klee esteve próximo do Surrealismo, nomeadamente nas obras mais oníricas e absurdas. Contudo afastava-se, por uma maior espiritualidade, pela ironia sem espírito de manifesto, pela maior preocupação com a pintura, e também por um gosto pela ordem e clareza de ideias. Embora se representasse a meditar de olhos fechados, tinha os olhos abertos para a natureza que tanto apreciava.
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Texto de Margarida Elias.

2 comentários:

APS disse...

Gostei do texto e da análise fundamentada que faz da obra de Klee - fiquei a saber várias coisas que não sabia. Obrigado, Margarida.

Margarida Elias disse...

Obrigada eu! :)