quarta-feira, 21 de maio de 2008

António Carneiro - Retrato de Teixeira de Pascoaes


Desenho de António Carneiro, Teixeira de Pascoaes (1923, Museu Municipal Amadeu de Souza-Cardoso, Amarante).
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António Carneiro conhecia desde cedo o retratado, que era como ele natural de Amarante. Encontraram-se pela primeira vez numa viagem do pintor a essa localidade, mas foi a partir da fundação de A Águia que as suas relações pessoais se estreitaram. Carneiro passava por vezes temporadas de Verão, em Setembro, no solar do escritor, tendo sido nesse contexto que foi feito este retrato. Pascoaes escreveu, em testemunho da ligação que existia entre eles: «(...) Éramos do mesmo povo, da mesma terra e da mesma melancolia panteísta (...)».
O retrato de Teixeira de Pascoaes, feito a água-tinta, apresenta uma figura de linhas fluídas e ondulantes, criada com traços finos que esboçam o rosto e o corpo. Esta figura surge em primeiro plano sobre um fundo neutro. Os contornos são indefinidos e por vezes multiplicam-se, produzindo o efeito de um apontamento rápido sobre a realidade, embora haja uma definição do rosto que dá uma leitura mais demorada e informada sobre essa zona do desenho, que é o retrato propriamente dito. Os traços finos do corpo surgem em diferentes direcções, sendo tendencialmente verticais, construindo uma estrutura tensa, expressiva e nervosa. O fundo não tem materialidade, é abstracto, e a forma, sobretudo do busto para baixo, confunde-se com ele, como se ela dele emergisse e nele criasse raízes. É a cor que vai contribuir para ajudar o olhar a ler e completar as formas. Os tons terra ajudam a criar uma atmosfera calma e agradável. A luz vem da esquerda, de frente para a figura. É uma luz colorida e crepuscular, que reforça uma sensação de intimismo. Ela modela a personagem, iluminando a sua face, mas deixando sombras que vão aumentando para o lado direito do quadro.
A zona mais elaborada está no topo central e corresponde à cabeça. Ela parece ascender, o que é reforçado pelos traços verticais e pelas angulosidades em forma de chamas do rosto. Além disso olhar tende a seguir o percurso dos ritmos (espaçamentos) mais lentos (em baixo) para os mais rápidos (em cima). O topo da figura forma uma curva que se debruça sobre a metade inferior. Há uma certa efervescência nos traçados e nas pinceladas que contrasta com a calma e concentração da figura, o que se traduz numa tensão contida. É como se a sua ebulição fosse apenas interior. «(...) O expressionismo de Carneiro, como metamorfose de uma via simbolista, não se vira para fora, para uma percepção de violência imediata, mas para dentro, íntimo e nostálgico, numa violência lenta, porque corresponde a um tempo que se perde e não a um que se ganha (...)» (Fernando Dias).
Questionando esta obra enquanto retrato a sensação que se tem é que ela exprime a verdade, mas vai além do naturalismo. Capta a personagem para além da sua aparência física, numa abordagem espontânea, de quem encontra alguém numa actividade quotidiana, não numa pose. A intenção vai para além da representação da realidade, procurando penetrar o ser. Como escreveu o retratado «(...) Reparae n'um perfil humano e vereis, sobre ele, as mãos febris d'uma alma a trabalhá-lo, duma alma que pretende rasgar a névoa e aparecer, cá fora, á luz do sol». A indefinição das formas, as suas aberturas, apresentam uma vontade de captar aquilo que transcende a pessoa enquanto ser carnal, deixando em aberto a compreensão de um ser que não se pode apresentar certo e definido porque é mudança, combinando-se com a realidade que o circunda. Tal como dizia Pascoaes: «Cada vez confundo mais os homens com as cousas. Eles vão-se apagando na indecisão brumosa da paisagem, conforme o nosso olhar se alonga através do seu espaço interior... Ha um ponto central em que um homem já se não distingue d'uma pedra... ou d'uma nuvem».
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Texto de Margarida Elias.

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